quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A era dos bunkers: roteiro e produção alternativa/independente

Em tempos de era digital, quais os desafios impostos quando se fala em produção audiovisual? De fato, vivemos a era das facilidades para se realizar filmes, não do jeito clássico com inúmeras pessoas em um set e altos custos envolvidos, mas com a flexibilidade com que o digital nos permite. Por essa perspectiva, nunca foi tão atual a frase de Glauber Rocha: uma idéia na cabeça e uma câmera na mão. Na década de 1960, quando esse grande cineasta brasileiro disse isso, sua preocupação era a favor de uma ruptura com a maneira com que os filmes eram feitos. Extremamente caros, centenas de pessoas na produção e preso a formatos industriais.

A questão aqui pretendida lida em certo sentido com as ideologias que Glauber Rocha defendia sobre um cinema revolucionário contrário a perfeição Hollywoodiana. O foco é a práxis, a forma de se fazer filmes hoje em dia. O que chama a nossa atenção na frase de Glauber Rocha é a liberdade de se pegar uma câmera e começar a filmar/gravar nossa idéias. Incrível, prático e inspirador.

Aliás, a falácia em torno do que o mercado chama de qualidade de imagem cresce de maneira a tornar a película um padrão até hoje. A pergunta que fica no ar é a seguinte: por que precisamos da película ou milhares de linhas de resolução para filmar nossas idéias? O que precisamos na verdade são histórias, roteiros, idéias compatíveis com um modo de produção independente, digital e avesso aos ditames do mercado. Quantas vezes vemos filmes que possuem tão somente essa tal de qualidade de imagem? Efeitos especiais, tecnologia 3-D e todos esses dispositivos circenses são apenas o que vemos: uma superfície, nada mais. Talvez seja apenas uma moda passageira sobre o excesso, impressionante para recreação, mas apenas isso.

A conta é simples: qualidade de imagem é cara. Para fazer um filme com uma handycam não precisamos disso. Imerso pela perspectiva libertária “glauberiana”, o que precisamos na verdade são apenas de boas idéias e isso é o mais difícil de se encontrar. O desafio é começar a discutir novas propostas e formatos de produção em que grupos de cinco ou seis pessoas espalhados em diversas cidades, comunidades e lugares comecem a realizar e desenvolver seus filmes de curta-metragem a custos extremamente baixos. É por isso que a concepção dos chamados bunkers pode ser pensada como um meio de produção digital alternativo e independente. Em 2005, quando vivia em Curitiba, eu tive essa experiência.

Nós filmamos em uma noite um curta-metragem chamado “Barata”. Depois de uma semana em edição, o filme estava pronto. Quanto gastamos? Dez reais. Quantas pessoas envolvidas na produção? Somente quatro. O curta ganhou um festival – o 19º Festival de Vídeo de Santo André –, obteve destaque no programa Zoom da TV Cultura e em prêmios rendeu em torno de oito mil reais. Carinhosamente, o curta foi apelidado de nosso Psicose fazendo referência ao filme de Alfred Hitchcok de 1960 pela metodologia de baixo custo empregada e pelo retorno econômico desproporcional ao investido.

O curta foi criado com uma idéia simples: uma câmera que se move em um apartamento. Isso foi o que o diretor Sérgio Ortêncio sugeriu-me para trabalhar. Dois dias depois, eu entreguei o roteiro: uma barata que se move em um apartamento e descobre um crime. Assim, todo o filme acontece com o ponto de vista da barata. A estrutura não foge da dinâmica encontrada em um thriller, a mudança está no olhar de quem conta e pelo qual a narrativa se desenvolve. Nós nos organizamos para filmar em uma sexta-feira. Sérgio tinha o equipamento: uma câmera handycam, um computador e um spot de luz; ele dirigiu e editou. Roberta Almeida fez a direção de arte e a produção. Eu fiz o roteiro, a direção de fotografia e a trilha sonora. João Ogaki ajudou segurando o ponto de luz. O curta pode ser assistido através desse link: www.videolog.com.br/marcelomoreira.

A pós-produção foi toda realizada utilizando o programa Adobe After Effects porque tínhamos uma preocupação que nos desafiava: como dizer ao público que aquele ponto-de-vista pertencia a uma barata? Sérgio fez algumas experiências misturando efeitos e descobrindo uma forma de tornar aquele unwelt crível. O resultado nos fez pensar sobre a possibilidade que a flexibilidade de tratamento de imagens poderia nos oferecer em nosso processo criativo de uma forma a dar ênfase dramática aos próximos curtas.

Depois dessa experiência (e antes dos prêmios e destaque no Zoom), nós estávamos confiantes em realizar outro curta-metragem com a mesma metodologia. Um mês se passou e começamos a gravar o filme “Acaso”. O desafio: dois personagens em um apartamento; conforme requisitado pelo diretor. Inspirado no pensamento de C. S. Peirce sobre o tema acaso e em algumas regras encontradas no Dogma 95 de Von Trier e Wintemberg, eu fiz o roteiro.

O curta é sobre um casal e sua história. E basicamente lida com fatos cotidianos de quando e como eles se conheceram e as possibilidades em torno disso. De acordo com Peirce não há continuidade quando lidamos com o acaso. Entretanto, quando lidamos com as teorias de roteiro nós vemos a importância do paradigma dos três atos e de seu processo contínuo até o clímax. Então, como isso funcionaria sem continuidade? O curta não tinha a pretensão de responder tal questão, mas era algo que tinha que se levar em conta e foi o que inspirou a concepção do roteiro.

Começamos a pré-produção: uma semana organizando tudo com ensaios, escolha de figurinos, teste de tomadas de cenas etc., dois dias para gravar e duas semanas para editar. Quanto gastamos? Cem reais. Quantas pessoas na produção? Sete: dois atores e cinco na produção. Os resultados: seleção em três festivais nacionais em 2005 – FAM-Florianópolis, Cinesul e Festival de Atibaia – e quando postado no videolog em 2008 foi promovido gratuitamente pelo site UOL. Após dois dias de exposição, o curta obteve mais de sete mil acessos e bons comentários (que podem ser vistos no link: (www.videolog.com.br/berta1974).

A pós-produção envolveu tratamento de imagens também, nós precisávamos encontrar uma estética visual que pudesse conter todas as idéias envolvidas no projeto. A ruptura com a cronologia dos fatos deu-nos a resposta, Sérgio procurou trabalhar na edição final com uma texturização que lembrasse a pigmentação de filme 8mm, inspirado no fato da Roberta ter idealizado no figurino uma ênfase em tons de cores inspirada nas roupas das décadas de 1960 e 1970.

Após essas duas experiências nós estávamos confiantes e começamos ums nova pré-produção de uma ficção-científica chamada “Contato”. Com a mesma atitude: brincando com os gêneros, gastando o mínimo possível, quatro a cinco pessoas envolvidas na produção e utilizando de todas as ferramentas que o contexto digital permite. Entretanto, durante esse processo, tive que deixar Curitiba, com seis roteiros inspirados nesse tipo de dinâmica.

Em janeiro de 2008, ministrei um curso de roteiro para curta-metragem no Museu de Imagem e Som de Mato Grosso do Sul. Após apresentar os dois curtas lancei a proposta aos trinta alunos presentes: um apartamento, dois a três atores e uma handycam. Primeiramente, todos estavam empolgados com o fato de um curta-metragem poder ser feito sem valores extraordinários. Fato que pode levar todo realizador/roteirista a um estágio de frustração: a espera de editais, produtores e o dinheiro para iniciar seu projeto. Segundo, criatividade não tem nada a ver com valores. Aliás, eu prefiro quando não temos muito dinheiro e somos obrigados a pensar mais e este é desafio de ser criativo. Terceiro, tal qual a máxima punk diz – faça você mesmo – em se tratando de produção independente/alternativo em um cenário digital isso parece ser uma verdade crível e motivante. Esses três tópicos foram muito abordados e discutidos durante o curso e os resultados foram: um curta-metragem filmado e sete roteiros prontos. A surpresa foi ver a diferença entre as histórias contadas nos roteiros desenvolvidos, mesmo dando-lhes perspectivas tão limitadas.

É óbvio que essas experiências não são totalmente novas ao cinema, ao contrário, Godard, Von Trier e Wintemberg, por exemplo, já trabalharam contextos similares ao produzirem seus filmes. Mas, por que ainda vemos a metodologia clássica de produção de cinema ainda funcionando e ditando a forma de se fazer filmes mesmo em tempos da era digital?

A distribuição e a transmissão não são mais problemas tão cruciais nesse novo cenário. O mar de vídeos postados é um fato que transforma a Web 2.0 em uma incrível ferramenta para um novo formato de produção. E claro, o equipamento necessário que podemos encontrar agora no mercado – câmeras digitais, computador e pontos de luz – reduzem os custos. Então, por que não encontrar outros parâmetros para se produzir filmes? Daí a sugestão dos Bunkers.

O termo foi pego dos escritos de Paul Virilio, porém só o termo e não o conceito. Na verdade, a imagem que a palavra evoca é que é importante para se manter em mente. É um termo militar com certeza, mas que aqui sugere a ideia de quatro a cinco pessoas em um espaço/locação reduzido filmando suas ideias. Algo similar de quando se observa uma banda de garagem que uma vez na semana seus componentes se reúnem para tocar. No caso do bunker, esse grupo se reuniria para filmar um roteiro. Agora imagine milhares de bunkers espalhados em todo lugar desenvolvendo seus curtas criando uma rede de produção alternativa.

É claro que é bom ganhar dinheiro fazendo filmes e ser pago pelo seu trabalho. Não sou contrário a isso. Na verdade, estou me dirigindo a quem quer fazer filmes e acha que isso é impossível. A quem ama cinema e sonha sentir a incrível sensação de se filmar algo que pertença a você. Entretanto, mesmo imerso as facilidades dos tempos atuais, é importante estudar e compreender as teorias do cinema, passar um tempo debatendo a técnica de montagem, de luz, de encenação etc., conhecer os diretores, os roteiristas e tudo que envolva a área. E, mais importante, ver filmes. Se você tem algo a dizer com seu filme, esteja preparado para realizar um bom trabalho.

Como Federico Fellini uma vez disse que cinema deveria ser feito com o coração. Parece meio ingênuo tal afirmação, mas no caso dos bunkers e na produção a custo reduzido isso parece bem pertinente em se dizer. O que estamos precisando não são apenas leis de incentivo, editais etc., talvez o que esteja faltando são novas propostas de metodologia de produção que consigam dar vazão a um cinema alternativo em consonância as facilidades da era digital e da Web 2.0.